II LAWCN 2019

terça-feira, 20 de maio de 2008

Analfabetismo científico e fundamentalismo ecológico

Caros
O post abaixo é a réplica de um comentário feito pela jornalista Andréa Brock no fórum da revista Galileu, na ocasião de uma polêmica matéria sobre experimentação animal. Veja os comentários iniciais no post anterior "Especismo, fundamentalismo ecológico e experimentação animal.
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Não Andréa, não basta, preciso de muito mais. A discussão precisa de muito mais. E é disso que estou falando o tempo todo: a ignorância, o clichê e o sentimentalismo barato permeiam essa discussão tão importante e eminentemente técnica. É patente o seu desconhecimento acerca das técnicas usadas na ciência. Vamos do início. 1) Pesquisa in vitro: de onde você acha que vêm os tecidos quando se trata de sistemas completos, como uma porção específica do sistema nervoso central para estudos eletrofisiológicos? Se, por outro lado, trata-se de uma cultura de células, é necessário um doador original de qualquer forma. Mas mais importante, a pesquisa feita com as células permite descoberta acerca de... células! Nunca de organismos inteiros, uma vez que células isoladas se comportam de maneiras diferentes de quando inseridas em seus sistemas. Qualquer extrapolação deve ser feita com imenso cuidado. Você mesma (ou outro internauta) mencionou que drogas se comportam de maneiras diversas em espécies diversas e você propõe testar a complexa reação fisiológica a um medicamento em uma cultura de células? Ou no caso do item 7, em um sistema computacional??? Reflita um pouco e você compreenderá que animais como os ratos estão entre os melhores miméticos da fisiologia humana (juntamente com gatos, cachorros e macacos) e, num exercício do óbvio ululante, são infinitamente mais semelhantes que o mais poderoso sistema computacional (ou modelo matemático no qual o sistema se baseia - portanto sendo exatamente a mesma coisa os itens 7 e 8, mas que a nossa colega colega trata como coisas diferentes). Imagino as bulas dos remédios: Computrina memorex: indicado para simulações computacionais de enxaqueca e dores de cabeça. Contra-indicado em caso de menos de 10 GB disponível de disco rígido. Foram relatados Memory Dump em alguns casos. Sistemas computacionais simuladores baseados em modelos matemáticos do funcionamento dos organismos são importantes ferramentas científicas que confirmam dados, tendo sim o potencial de predizer, quando muito bem elaborados e utilizados, resultados da experimentação animal. A sua grande vantagem é a possibilidade de contornar o fator tempo da experimentação animal ou outros fatores inviáveis de se reproduzir em laboratório, tais como as condições ambientais nos primórdios da vida. Entretanto, essa técnica tem limitação importantíssimas. A primeira é que você só é capaz de gerar um modelo se você conhece algo do sistema a priori! É obvio! É evidente! Mais ainda, se o que se sabe é limitado demais ou está errado, a simulação falha em predizer as respostas do sistema fisiológico. Portanto sistemas computacionais nunca substituirão a experimentação animal.

2) Cromatografia e espectrometria de massa? Meu Deus, quanto clichê! De fato essa maravilhosa técnica nos permite identificar compostos presentes em uma determinada solução segundo sua resposta espectral a um estímulo luminoso. E daí? O que isso resolve isoladamente? Para começar você emprega essas técnicas para detectar compostos presentes em fluidos extraídos dos seres vivos. Depois, como é possível identificar, por exemplo, compostos sintetizados ou degradados em situações de estresse, seu material for coletado de um animal que não foi submetido a essa situação e, portanto, não metabolizou e nem sintetizou os tais compostos???

Eu me recuso a comentar o item 3 "Farmacologia e mecânica quânticas (de onde vem o plural aqui? Farmacologia quântica?)" que nem técnicas são e sim disciplinas da ciência.

Os itens 4 e 5 são exatamente a mesma coisa e representam o super-conjunto do qual 6 faz parte como método investigativo complementar. São, de fato, uma importante ferramenta para o estudo de doenças. Mas os achados nesse caso são sobretudo correlacionais e não causais. Por definição essa técnica não investiga mecanismos básicos da patologia (muito menos da fisiologia). Na verdade, ela é muito importante no sentido de sugerir caminhos a serem investigados pela pesquisa básica, indicando possíveis fatores causadores das doenças e estratégias de saúde pública. Entretanto, pela própria limitação da técnica, há um risco enorme de erros crassos de causalidade. Vai um exemplo brincalhão: você identifica que 9 meses após o carnaval há um aumento no número de nascimentos de crianças de uma determinada região do país, onde, exatamente no período do carnaval, é época de uma determinada fruta. Você então começa a tratar mulheres com problemas de fertilidade com a fruta? É claro que o exemplo é exagerado e os epidemiologista nunca concluiriam isso. Mas eles também não se atreveriam a descartar de pronto a fruta e nem a concluir que se trata da liberalidade sexual presente nas festas populares. Eles proporiam os seguintes experimentos: A) forneça a fruta a um grupo de indivíduos que não freqüentam festas de carnaval de maneira alguma, B) forneça a fruta num período diverso dessa festa e C) retire a fruta da alimentação de outro grupo que têm um comportamento sexual mais desregrado (sem preconceito hein!?) e veja em qual grupo há maior incidência de nascimentos de bebês.

O item 9 também é óbvio demais par ser comentado. O item 10 chega a ser uma piada. Se você considera o seu cérebro semelhante o suficiente a uma placenta, de maneira a permitir que lhe façam uma neurocirurgia com o treinamento nesse tecido, essa é uma escolha sua e aí eu não posso mesmo interferir - já eu dou mais valor aos meus neurônios. O item 11 é similar aos 7 e 8 e se trata de uma aproximação limitada de uma pequena parcela da complexa fisiologia humana. No item 12, imagino que você se refira, sobretudo a áreas como a bioinformática, por exemplo, uma vez que boa parte das pesquisas genéticas implicam na criação de mutantes que, dentre outras condições, muitas vezes mimetizam patologias humanas, portanto representando experimentação animal. Pois bem, disciplinas como a bioinformática dependem de dados coletados da experimentação animal. De onde você acha que veio os vários genomas já seqüenciados se não das amostras dos tecidos? E os dados da expressão gênica presente em patologia como o câncer ou desordens neurológicas? De onde você acha que vem a informação da função de um gene ou de sua proteína de forma geral, informação tão importante na bioinformática? A conformação estrutural quaternária das proteínas de fato, sugere muito sobre a sua função biológica, mas de forma alguma encerra o problema. O mecanismo da vida é simplesmente complicado demais. Mais grave ainda, prever computacionalmente a conformação estrutural da proteína a partir da seqüência de aminoácidos é ainda em problema em aberto na ciência, e talvez, permaneça sempre assim, por se tratar, possivelmente, de um problema "ill posed".

Enfim, concordo que há alternativas para a experimentação (nunca discordei disso e nem discorda a comunidade científica séria), mas nenhuma delas foi capaz de substituir à altura a experimentação animal. Os métodos citados são todos, sem exceção, muito valiosos e são amplamente empregados na academia. Entretanto, dizer que evoluiremos no conhecimento do mundo natural que nos rodeia e permeia, usando apenas esse conjunto de ferramenta, é um reducionismo simplista próprio do analfabetismo científico exemplificado de forma prática neste fórum.

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